O clássico de horror natalino e um dos pioneiros do subgênero slasher apresenta um viés feminista e utiliza a câmera subjetiva de maneira brilhante para simular a misoginia que está sempre à espreita na vidas das mulheres.
Em uma noite durante as férias de Natal, uma casa de jovens universitárias se torna alvo de telefonemas misteriosos e obscenos feitos por um homem desconhecido. O que, no começo, é motivo de zombaria por parte das jovens, transforma-se progressivamente em um terror psicológico e sangrento, sobretudo após Barb (Margot Kidder) perder a paciência com a situação e enfrentar o homem que está do outro lado da linha, que desliga o telefone deixando uma ameaça de morte. E assim, a primeira morte do filme acontece de forma chocante. Os telefonemas passam a ser mais frequentes e violentos e, com o desaparecimento de uma das jovens, elas percebem que o homem, Billy, como ficamos conhecendo mais tarde, pode ser um perigo real na vida delas.
Lançado em 1974, o filme canadense Black Christmas (ou Noite do Terror, como foi distribuído no Brasil) é um dos pioneiros do subgênero slasher, introduzindo elementos e ideias que foram muito apropriados pelos filmes que vieram depois. O filme chama a atenção também por conta de seu viés feminista que permanece atual e está contido tanto na história quanto nas personagens. A década de 70 foi marcada pela ascensão dos movimentos feministas e do debate público sobre libertação sexual e autonomia sobre o próprio corpo – a decisão do caso Roe vs. Wade, que garantiu o direito ao aborto nos Estados Unidos, aconteceu em 1973. Assim, corajosamente, ambas as questões ganham destaque no filme e atravessam de alguma maneira a vida das personagens, sobretudo a vida da personagem principal Jess (Olivia Hussey), que está decidida a realizar um aborto para poder se dedicar aos seus sonhos e objetivos profissionais.
A decisão de Jess acaba se tornando um conflito central no filme a partir do momento em que seu namorado, o estudante de música Peter (Keir Dullea), mostra-se contrário à realização do aborto e furioso por Jess não se curvar aos desejos dele de constituir uma família e ter uma esposa que abdica de si mesma para apoiá-lo. Coincidentemente, é Jess quem atende à maioria dos telefonemas, assim, suspeitas contra o Peter são inevitáveis. Diferente do conservadorismo que tomou conta dos filmes de horror da década de 80, aqui Jess não é punida por sua autonomia, ao contrário, ela é a heroína que sobrevive no final e que luta para defender suas amigas, além de estar sempre pronta para ajudar, desde pegar a bombinha para asma de Barb até participar da busca no parque por uma menina desaparecida. Mas ela também comete erros, como no momento em que descobre a origem das ligações. Jess é um ser humano em toda a sua complexidade, assim como as mulheres da vida real.
O elenco principal do filme é composto por mulheres e ainda que essas personagens femininas sejam livres, fortes e independentes, a misoginia está sempre à espreita. Os homens que cruzam o caminho delas revelam a misoginia que as mulheres precisam enfrentar todos os dias. Como, por exemplo, o assédio através dos telefonemas de Billy, o pai superprotetor e moralista de Clare (Lynne Griffin), o controle que Peter quer exercer sobre Jess chegando a se tornar uma ameaça à integridade física dela e até mesmo na delegacia, quando policiais tratam de modo irrelevante as denúncias sobre os telefonemas e o desaparecimento de Clare, insinuando ser apenas mais uma jovem que deve ter fugido com o namorado. Há uma sensação de perigo iminente que cerca as jovens e ela parte especialmente dos personagens masculinos.
O diretor Bob Clark cria uma atmosfera violenta e macabra que invade um espaço que deveria ser seguro e envolve as personagens. A casa, um refúgio íntimo, é tomada pelo ar frio da morte e de um cadáver em decomposição no sótão que contrasta com a decoração quente e aconchegante de Natal presente na sala. Billy não apenas mata as mulheres, ele utiliza o seu poder social para violar a intimidade delas e, após os assassinatos, dispor os seus corpos como quem possui total controle e direito sobre eles. Embora as personagens carreguem uma humanidade e uma simpatia importantes para que nos identifiquemos e nos preocupemos com elas, desde o início o diretor coloca o público como cúmplice do assassino ao assumir o seu ponto de vista através do trabalho brilhante de uma câmera subjetiva com lente angular, que proporciona um campo de visão mais amplo. Saber exatamente quais os passos do assassino e assistir dolorosamente e sem poder agir à morte das jovens pelos olhos dele é sufocante e desesperador, assim como as sombras em que ele se esconde. Black Christmas é um filme assustador e que deixa uma angústia no peito quando os créditos surgem na tela e o telefone continua tocando.